As experiências chamadas “sofrimento” invariavelmente são acompanhadas de consciência. Desde muito tempo povos em todos os continentes elaboram a questão do sofrimento investigando seu modo de vir-a-ser e expressões, experimentando abordagens variadas no intuito de melhor compreendê-lo e saná-lo. Não é exagero afirmar que parte considerável do que entendemos como história humana pode ser lida como efeito da dialética entre consciência e sofrimento.
Quando pensamos o atendimento terapêutico como atenção ao sofrimento, percebemos que esse atendimento não se baseia inteiramente no sofrimento. A atenção não é ela mesma sofrimento; o espaço entre os pensamentos não é ele mesmo sofrimento. Assim, inferimos que o sofrimento não é absoluto. Essa realização ao mesmo tempo simples e radical mobiliza até hoje a inventividade humana, indissociável de faculdades como discernimento e imaginação, para a construção do que podemos chamar "terapêuticas de cura", antes de mais nada um olhar para a saúde.
Saúde é conceito que comporta muitos determinantes. Não é apenas ausência de doença, uma vez que é possível estar saudável na doença, o que revela ser o campo da saúde mais do que atenção ao corpo da pessoa. Muitas tradições sabem disso: saúde tem a ver com inteireza, sendo o cuidado em saúde o conhecimento prático do que salvar para sustentar a inteireza ou aumentar a vitalidade que permite um bem-estar íntegro. Essa noção de inteireza, presente na etimologia da palavra saúde, não é algo que se pode fixar, pois se trata de ideia complexa que, mais das vezes, põe em xeque entendimentos categóricos que teorizam a saúde em áreas especializadas sem conexão entre si e, maior dos equívocos, dissociadas da pessoa em meio aos corpos (sim, corpos no plural).
No atendimento terapêutico conhecido como psicoterapia temos um bom exemplo de como o campo da saúde é uma região de junções que só podem ser dissociadas para fins práticos mais ou menos hábeis. Um exemplo: o sujeito psicológico entra em terapia e fala de seus incômodos. Não demora muito, frequentemente vemos que essa pessoa traz consigo o mundo, incluindo normas políticas e jogos de verdade instituídos por terceiros, até desconhecidos. De repente, a psicoterapia precisa abrir seu escopo para notar a dimensão sociológica dessa pessoa atravessada e possivelmente induzida politicamente. Agora o sofrimento psíquico não é mais gerado necessariamente por algo inerentemente errado com o psiquismo do sujeito. Eventualmente, tal sofrimento é mesmo uma resposta saudável diante de uma estrutura doentia na qual a pessoa é coagida a se conformar.
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