Uma vez ganhei um aquário. Peixes dourados nadavam com neons, platis, ituís e limpa-vidros. Às vezes os peixes morriam.
Depois de limpar o aquário e remontá-lo permanecia fora do tempo, absorvido pelo universo na caixa de vidro. Do meu ponto de vista era um refúgio silencioso e vitalizante. Não sabia o que estava fazendo. Simplesmente escorregava nessa experiência de atenção não-elaborada. Era e continua sendo algo natural, isto é, que acontece apesar de mim.
Muitos anos se passaram e com a prática do treino da mente comecei a notar algumas dessas naturalidades presentes na imediaticidade da experiência comum: cognoscência, espontaneidade, senciência. O ponto aqui é que há já na experiência capacidades naturalmente presentes. Isso significa que não podem ser treinadas, mas apenas notadas. Todo o caminho gradual para a meditação parece ser desconstruir obstáculos e obscurecimentos para o reconhecimento dessas capacidades e qualidades presentes nas mentações e estados de consciência.
Uma dessas naturalidades é chamada pelos meditadores tibetanos de Ieshe (ye-shes), a capacidade (shes) cognitiva que opera antes do tempo (ye). Falando assim, parece algo sutil e místico, mas trata-se mesmo de algo que opera frequentemente na mente cotidiana e permite a experiência de reconhecimento e liberação dos fenômenos. Na prática de shamata, por exemplo, pode ser vislumbrada na capacidade de notar.
Uma coisa sobre "notar" é que ela não precisa que você note. Muitas vezes ocorre quando você está fixado no tempo, isto é nos fenômenos históricos e paisagens fictícias. No treino em shamata, treinamos notar quando a atenção foi capturada por um fenômeno e movida de seu objeto. Dado o nosso autocentramento, podemos pensar que nós notamos a "distração", mas uma maior intimidade com a mente e sua capacidade cognoscente eventualmente irá plantar uma certa dúvida que pode ser descrita nesses termos: "Se eu estava fixado naquele fenômeno, completamente abduzido pela formulação, pela imaginação, inconsciente de tudo o mais fora daquela paisagem ou acerca da natureza dela, que "relâmpago" de consciência foi aquele que rasgou a fixação, liberou a paisagem e devolveu-me ao frescor da experiência aberta imediata de não fixação? O que notou a distração?"
Uma vez que essa dúvida acontece, estamos farejando Ieshe, uma capacidade operativa que pode ser descrita como aquilo que permite que a mente se atualize, se refresque, se desfixe, conheça ao seu próprio espetáculo e conheça o conhecimento como fenômeno enquanto tal. Uma vez que a prática "limpa" os obscurecimentos que nos impedem de ver essa capacidade naturalmente presente, nossa prática é bastante facilitada e de certa forma reduzida a reconhecer de novo e de novo essa capacidade em meio a tudo o que aparece e desaparece.
Podemos agora nos perguntar: Quais outras capacidades estão presentes em todas as experiências comuns? O que elas dizem dessas experiências? Como elas informam nossas práticas? Se são naturalidades, ocorrendo espontaneamente em cada experiência, o que podemos praticar ou deixar de praticar para notá-las?
Claro e afiado, sem mto reboco, gostei devéras ❤️🔥