Don Juan dizia que se você cessasse a conversa interna iria ver um mundo inteiramente novo surgir à sua frente.
Conversa interna é o tópico deste texto. Gostaria de começar por uma frase atribuída a Don Juan por Castaneda que dizia que se uma pessoa de conhecimento cessasse a conversa interna, veria o mundo mudar inteiramente. Para mim essa frase se conectou com duas outras afirmações, uma que diz que a raiz de todas as instruções é a mente; e outra, de Ananda, que diz que “aquilo no mundo através do qual alguém percebe o mundo, concebe o mundo.”
Uma prática conhecida como voto de silêncio
Quando experimentei a disciplina do silêncio autoimposto pela primeira vez ficou claro que o mais difícil não era fechar a boca, mas experimentar silêncio na mente. O desafio inicial era, por assim dizer, reconhecer e me desprender da conversa interna. Mas vejam só como estava visceralmente identificado com a fala.
Quando parava para observar a mente chegava o momento no qual a agitação mental parecia me sitiar, pensamentos de todos os lados, sobre todas as coisas, desordenadamente, desarticuladamente. Era como estar em um disco arranhado, ou em uma câmara de eco. Muitas vezes era apenas eu, conversando comigo mesmo. Debatia pensamentos, sensações, reações, tudo mesmo. Ora, ora, ora, o grande ruído vinha de minha conversa interna comigo mesmo. Anotei isso.
Entra shamata com objeto
Enquanto isso, seguia praticando shamata com objeto. Comecei a ver que a dificuldade em sustentar o aspecto conhecido como permanecer do treinamento da atenção era enormemente causada pela constante conversa interna. Quanto mais conversa interna menos aspecto de permanecer. Ao indulgir demasiadamente no degustar da fala, produzi efeitos indesejados: muita atividade mental repetitiva que frequentemente disparava reações emocionais que melhor seriam chamadas de aflições.
Quanto mais conversava comigo mais me embaraçava em mundos imaginários aparentemente sólidos e reais e, como consequência disso, me obrigava a sentir e ressentir uma montanha-russa exaustiva de emoções neuróticas. Além disso, sempre que precisava aplicar a mente a contemplar um tema qualquer, logo ela se desconcentrava do tópico de interesse e passava a vagar em vão por objetos aleatórios que muitas vezes nem tinham relação com a contemplação em curso. Como tudo isso pode ser frustrante!
Um mapa sobre o treinamento da fala
Através da prática da meditação silenciosa, descobri algo que já fazia parte de alguns mapas de meditação. Grosso modo há dois aspectos da fala, um externo e outro interno, sendo que este é fala não expressada enquanto aquele é a fala expressada.
Na prática de silêncio o passo inicial é fechar a boca. A lógica é que isso favorece a redução da conversa interna. No meu caso, no começo, pareceu justamente o contrário: a conversa interna cresceu como nunca, ou talvez o gigantismo dela tenha se tornado óbvio. Mas isso fora previsto: eu me tornaria intensamente consciente da conversa mental uma vez que fechasse a boca. E foi o que aconteceu.
Vocês podem imaginar o meu sofrimento tentando diminuir a conversa interna conversando comigo mesmo sobre como a conversa interna era desaconselhável, etc. Conto com a compaixão de vocês. Naquele momento estava refém da ideologia de que as coisas são vencidas com esforço. Mas nem todas as coisas são vencidas com mais esforço
Lutar para cortar a conversa interna foi uma prática interessante, mas um tanto dispendiosa. Nesse momento fui apresentado a uma técnica de descontração
Uma técnica simples
Eu estava lutando contra o trem de pensamentos pensando sobre o trem de pensamentos, falando mal dele, lembrando como era desaconselhável, etc. Como você quer reduzir uma coisa adicionando mais dela? Obviamente que não iria funcionar. A técnica de descontração simplesmente afirmava que eu deveria notar o trem de pensamento e soltá-lo. Eu iria fazer isso muitas, muitas vezes, tantas quanto fosse magnetizado pela confusão ou distração ou por alguma emoção que me tomava o corpo e parecia gerar ainda mais pensamentos reativos. Caos é uma palavra que se aplica. Mas havia sim uma certa ordenação que me passava despercebida.
Quanto mais praticava a arte de notar a conversa interna sem adicionar elaboração conceitual, mais observei benefícios. Do ponto de vista dos eventos mentais, a mente começou a se aquietar, isto é, ainda que ocorressem pensamentos eles não causavam tanta distração e desapareciam por si mesmos sem - oh glória! - necessidade de esforço de minha parte. Pense numa economia de energia. Além disso, o fluxo de conteúdos mentais se tornou mais ordenado, isto é, não se dispersava em todas as direções e de modo fragmentado. Com isso, constatei um intervalo entre os pensamentos, o que se tornou imediatamente objeto de minha admiração. Com o tempo, para meu entusiasmo, momentos de silêncio naturalmente se manifestavam.
Parece mesmo que há um oceano de não-conceitualidade, silenciosa e viva, bem em meio ao ruído. Se isso não pode ser chamado de deleite…
Mané deleite, e a fala?
Uma instrução que recebi de fontes variadas dizia que a fala interna era para ser observada. Inclusive, o aspecto de permanecer do treinamento da atenção entra aqui justamente para sustentar a atenção continuada nas ocorrências da fala interna. A mente tinha sempre tido essa conversa interna? Lembrei de conversar comigo quando criança. Ocasionalmente, havia também uma voz comentarista, vezes maravilhosa, vezes insuportável, que soava independente de mim.
Essa voz comentarista é um espetáculo! Do ponto de vista do conteúdo, uma mixórdia de opiniões, frequentemente não solicitadas, mas calma, isso não quer dizer que esses comentários não solicitados não tenham valor e serventia. Inclusive, defendo a importância da fala interna no desenvolvimento das crianças.
Vocês já notaram como linguagem é um troço fascinante? Como eu me deliciava debatendo intimamente o que ninguém queria debater comigo. Eu era livre para explorar com a mente qualquer tema - sem tabu (ao que parecia). Mas alto lá! Em algum momento, essa conversa se tornou parte indissociável de quem eu era ou pareço ser. Quanto à voz comentarista, ela tem a chave da casa e entra quando bem entende. Com o treino experimentei não replicá-la, não reificá-la, não reprová-la, não acatá-la de imediato, não transformá-la em outra coisa. Eu estava treinando notar sem adicionar.
Esse espaço de não-ação (não-reatividade?) me ajudou a ver que essa fala se manifestava também como debates meus imaginando conversas com outras pessoas. Parece uma coisa interessante (e é!) mas adicione uma pitada de neurose e logo se nota uma imaginação catastrófica, frequentemente ansiosa, com efeito sobre o corpo no estado geral de cansaço cumulativo e adoecimento que uma pessoa irá vivenciar e que chamamos velhice. Se isso parece um pouco deprimente, recorde-se dos "espaços" entre as falas, entre as palavras e entre as sentenças. Esse hiato, esse hiato é como um filão de ouro.
Uma joia é a capacidade da fala de ouvir (!) a própria voz. E como esta parece ter características fantasmagóricas, de sonho, de miragem sônica, com tom, passo e ritmo aparentes. Passei a ouvir as palavras que gostaria de dizer antes de vocalizá-las, o que acabou por me ajudar a experimentar não responder a estímulos e provocações de sobressalto. Em meio a isso, notei que por trás das palavras (ou seria em meio a elas?) parece haver um impulso, uma “energia” que sustenta a fala e, mais especificamente, a qualidade dela. Por exemplo, se essa “energia” está "contaminada" com malícia, a fala interna tende ao malevolente; se é vocalizada, muitas vezes é maledicente. Entra aí a investigação de elementos como 1) visão de si e do mundo, 2) emotividade e 3) motivação na fala.
Com isso, inferimos que fala é um agregado com autonomia limitada, existente e condicionada por fatores tão aparentemente apartados quanto atenção, gramática e mitologia, problemas gástricos, espaço… Bem, a lista é longa e aponta para uma característica da fala: ela é interdependente, não existe por si mesma, não é dona de si, existe no mundo como o mundo, aparecendo do espaço como espaço de fala e consciência. A fala brilha, mesmo quando é sinistra e melancólica a fala brilha. O fascínio com a radiância de seu brilho não chega a espantar; gostamos de luzes e coisas brilhantes. O milenar mercado de joias preciosas atesta nosso apreço pelo luzidio, pelo luminescente e pelo translúcido. Mas esse é apenas um aspecto mais externalizado de nosso encantamento pela luz. No passado esse peculiar embruxamento pela luz - "luz da mente, luz da fala, luz do mundo" - já foi chamado de “Maya”.
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