Desde crianças temos experiência com o sofrimento. Vivenciamos violências e notamos crueldades à nossa volta. Pode-se dizer que parte significativa de quem pensamos ser hoje e de nosso comportamento atual advém de nossa relação com a violência.
Frequentemente, buscamos evitar sentir dor e mal-estar. Para tanto, experimentamos muitos mecanismos de defesa. Alguns, mais efetivos, podem terminar assimilados como se fossem traços últimos de quem somos. Quando não podemos nos atualizar e notar que não precisamos necessariamente nos defender do que antes aparecia como assustador e violento, mantemos nossos mecanismos de defesa ligados acrítica e automaticamente, e nos exaurimos em agonia, produzindo, eventualmente, disfunções neuróticas - máscaras que terminam por nos apertar, ainda que tenham sido úteis no passado e ocasionalmente.
Importa ressaltar que esses mecanismos de defesa irão surgir da inteligência: toda neurose tem uma base inteligente: atenção, capacidade analítica e de predição, dentre outras faculdades e sensibilidades, são usadas para construir mecanismos de defesa e sobrevivência.
Nosso sofrimento e o sofrimento do mundo são avassaladores, mas queremos sobreviver. Para seguir em frente, precisamos nos cuidar, o que frequentemente quer dizer “lutar ou fugir”, com suas muitas possibilidades táticas-existenciais, mais ou menos racionais. Infelizmente, o que surge como estratégia eficiente para nos proteger pode acabar sendo aquilo que nos oprime.
Quando nossos mecanismos de defesa nos constrangem, experimentamos violência. Aquilo que foi criado para proteger-nos tornou-se um traço marcante e recorrente de quem pensamos ser, e ganhou realidade o bastante para se tornar um fardo para quem o inventou e sustenta. Segue-se daí, normalmente, autoflagelação e, à moda atual, certo ethos de cinismo narcisista autodestrutivo.
Recorde-se que muitas vezes estamos tentando nos proteger ao mesmo tempo em que temos clareza do sofrimento pelo qual outras pessoas e seres passam. Dada nossa inteligência em empatia, notamos que a experiência de sofrimento é uma que a grande maioria das pessoas parece querer evitar. Pode acontecer de surgir aqui uma certa motivação preocupada com o bem-estar dos outros. Falamos em empatia, compaixão, solidariedade, habilidades pró-sociais, pensamento crítico. Aspirações de beneficiar os seres e o mundo são formuladas. Começam os desafios da ascese: visões e métodos que iremos adotar para nos produzir e cuidar do sofrimento, nosso e dos outros. Ocorre que cuidar de si e dos outros frequentemente é difícil.
É possível elaborar uma lista das razões das dificuldades no campo do cuidado. Para começar, nunca partimos de uma neutralidade; levamos sempre e praticamos nossas ideologias, com suas declarações do que seria verdadeiro ou válido, do que é possível fazer ou não, do que tem valor ou não, de quem merece ser tratada como uma pessoa digna de direitos... Assim, o cuidado age enviesado por nossas ideologias (muitas das quais transparentes para nós) e por nossas próprias mágoas e neuroses - que não podemos descartar em sua influência de condicionar nossas ações e reações.
Mas cuidar é uma arte e requer ferramentas críticas (de si e do mundo) e uma série de saberes e habilidades que são fáceis de esquecer ou de nunca cultivar. Por isso vemos tantas experiências onde a intenção do cuidado se manifesta em casos monstruosos e absurdamente violentos de cuidadores despreparados, neuróticos, cruéis e até letais.
O que nos leva de volta ao cuidado. Esse cuidado, lá na infância, era o cuidado de si. A criança tenta se proteger, mas é inteligente o bastante para dar conta que outras pessoas também sofrem. Há uma necessidade de equilíbrio: como cuido de mim enquanto cuido dos outros? Dado o tamanho do nosso sofrimento, podemos adotar a estratégia de colocar nossa própria segurança como valor absoluto. Problemas advêm disso. Outras pessoas irão buscar cuidar de si cuidando dos outros, mas nem sempre poderão fazer isso sem se machucar ou violentar as pessoas que dizem amar ou cuidar.
Talvez não possamos cuidar dos outros se não cuidarmos da gente; talvez não possamos cuidar da gente se não cuidarmos dos outros. Mas muitas vezes cuidar dos outros irá nos desafiar, e talvez seja aqui que precisaremos cuidar da gente e nos atualizar. Talvez os dois cuidados sejam complementares. Então, às vezes, precisaremos enfatizar o cuidado de si para nos capacitar a estar em cuidado com os outros. Em alguns casos, descobriremos que esse cuidado dos outros pode mesmo ter se tornado estratégia para não termos que entrar em contato conosco e cuidar da gente - talvez não nos sentimos dignos, etc. Por outro lado, a ênfase neoliberal e individualista no cuidado de si, no bem-estar pessoal com certo desprezo pelo cuidado no nível interpessoal e comunitário pode encobrir dificuldades éticas nas relações com outras pessoas e com nossas próprias visões de mundo.
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