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Newsletter #2

  • Foto do escritor: Breno Xis
    Breno Xis
  • 2 de mar.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 3 de mar.

Como a fixação em pérolas de sabedoria pode informar o treino da mente


Efetuei uma mudança na logística da newsletter. Agora os textos são publicados diretamente no site e as pessoas assinantes recebem uma atualização. Fiz isso para diminuir os emails na caixa de entrada de vocês, algo que penso ser desejável em um mundo que não para de demandar nossa atenção.

 

Para além das "Pérolas de sabedoria"


Vocês devem ter notado um fenômeno comum em redes sociais: as “pérolas de sabedoria”, frases curtas, supostamente profundas. Essas sentenças são frequentemente dispostas sem qualquer contexto e não é incomum que as pessoas apontadas como suas autoras nunca tenham dito o que está escrito.


"Tudo o que somos é o resultado do que pensamos." (Citação atribuída ao Buda, que ele nunca disse.)

Por causa da dinâmica de atualização e consumo infinito das redes sociais, essas frases aparecem em profusão, sempre um tanto efêmeras e natimortas, prontinhas para serem arrastadas para trás por nossos dedos em busca de estímulo. Em um único dia, uma pessoa pode passar por dezenas delas.


Gostaria de partilhar com vocês algumas impressões sobre esse fenômeno que parece ser uma nova roupagem, mais apressada, de uma prática atemporal: a busca por algo que possa nos ajudar a viver melhor e a compreender aspectos decisivos da vida. Essa procura tem nos movido desde muito tempo e toma formas variadas. 


"A vida é uma série de mudanças naturais e espontâneas. Não resista a elas; isso apenas cria sofrimento. Deixe que a realidade seja a realidade. Deixe que as coisas fluam naturalmente do modo que elas quiserem." (Atribuído a Lao Tse. O que aconteceria se tomássemos essa frase como um imperativo ético? Quais seriam as repercussões de "Deixe que as coisas fluam naturalmente do modo que elas quiserem" no campo político?)

Ao pensar essa busca, algo útil vem da metodologia: perguntas que nos fazem examinar o que de fato estamos buscando; por que buscamos o que buscamos; como buscamos; e quais são os resultados e repercussões que essa busca gera. Tais perguntas podem revelar muito por trás de nossas ações, incluindo as mais banalizadas, como percorrer dezenas ou centenas de stories por dia.


Sei que entre vocês há pessoas praticando meditação, e que essa prática é motivada por diferentes aspirações, incluindo sofrer menos; treinar algumas capacidades; e acessar certas realidades. A grande maioria começou entrando em contato com ensinamentos e práticas como pessoas novatas, sem maior experiência.


Há no budismo um esquema que pode ser útil. Refere-se ao caminho gradual, no qual uma pessoa em situação de aprendiz iniciante recebe instruções e práticas. Essa etapa é chamada “Caminho do ouvinte”. Nela vamos receber algo e deter alguma atenção sobre o que recebemos, na forma de uma certa abertura intelectual não muito engajada.


A etapa seguinte é chamada “Caminho da contemplação”. Aqui vamos começar a colocar em prática aquilo que ouvimos. É uma passagem do conhecimento teórico para o conhecimento prático. Os ensinamentos são examinados em nossos contextos pessoais, testados através de práticas formais e informais variadas.


A terceira etapa é chamada “Caminho da meditação” e sobre ela não irei elaborar nada. A questão está em como os dois caminhos anteriores podem nos ajudar a refletir o consumo de “pérolas de sabedoria”. De acordo com eles, ao ler uma “pérola” estamos no caminho do ouvinte. Contudo, algo mais é exigido se queremos praticar o caminho da contemplação.


O que é requerido pela etapa seguinte, o caminho da contemplação, é uma prática que não se resume ao investimento intelectual. Aqui alguém se lança em uma prática integral, na qual a atividade intelectual é vista como um dos fatores que podem ser mobilizados. O intelecto complementa outros modos de conhecimento e o fetiche na conceitualização, se existe, é problematizado.


Ilustração de Dan Hillier
Uma ilustração de Dan Hillier. Seria ela uma pérola de sabedoria disfarçada de imagem?

Algo que pode ilustrar a mudança de uma etapa para outra vem diretamente de minha experiência como terapeuta. Em algum ponto do processo terapêutico, após uma quantidade de elaboração, pode ficar claro que a fala e a elaboração podem não ser suficientes e mesmo que sejam parte de uma estratégia de evitação. 


Algo interessante acontece. As pessoas que seguem com o processo comumente descobrem alguma dificuldade em atender à experiência sem incorrer na conceitualização reificante habitual, o que implica uma mudança de ênfase nos fatores mentais que estruturam a própria consciência em um dado momento - uma habilidade treinada do caminho da contemplação.


Aqui temos um indicador acerca de onde podemos estar no contexto das duas etapas. O recurso frequente à conceitualização habitual e a dificuldade em atender à experiência sensível, seja ela considerada corpo ou mente, sugerem uma localização mais próxima ao caminho do ouvinte.


A passagem para o caminho da contemplação marca uma mudança não apenas no modo como percebemos as coisas, mas em nossa capacidade de aplicar ou desaplicar certas faculdades mentais. E essa talvez seja uma das dificuldades. O caminho da contemplação exige mais do que envolvimento intelectual. Ele pede uma alfabetização dos fatores da consciência.


Algo assim, na qual lentamente aprendemos a ver pontos cegos, preferências nunca antes analisadas, aquilo que outras tradições chamam de “inconsciente", pode ser percebido como estranho e perigoso. Pessoas em busca de conhecimento genuíno são frequentemente confrontadas pelo conhecimento que buscam.


A fixação em "pérolas de sabedoria" pode revelar um modo de consumo no qual o conhecimento nos serve sem nos transformar. Mas o conhecimento genuíno modifica aquele que conhece. Uma atualização do conhecido é uma atualização de quem parece conhecer e da própria capacidade de conhecimento.


Essa atualização de si passa por uma tomada de integridade na qual os fatores mentais são vistos em sua interdependência. Ditos como “Que frase profunda!” passam a ser menos importantes do que a habilidade de descontrair o corpo e usar a respiração de certas maneiras, isto é, sentir frequentemente torna-se crucial para pensar e liberar fenômenos.


Obrigado pela atenção de vocês. Breno


PS. Este mês publiquei uma crítica do dito "Viva o momento presente", antecipando e complementando as reflexões contidas aqui. Caso tenham interesse, acessem o perfil @brenoxis no Instagram e busquem o post com a ilustração de um olho mirando por um buraco feito no céu.

 

Se você gostou desse texto, considere a possibilidade de assinar minha newsletter. Nela elaboro questões contemporâneas em associação com as contemplações do treino da mente para a meditação que publico por aqui. Em um tempo quando os algoritmos das redes sociais filtram as informações que podemos acessar, parece-me uma boa ideia retomar os princípios de acesso descentralizado à informação e ao conhecimento. Para assinar a newsletter, basta informar seu email no campo mais abaixo. Você poderá cancelar a assinatura quando quiser. Agradeço por sua atenção e tempo.

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imagem do terapeuta breno xis, idealizador da autocuradoria
Breno Xis

Atendo pessoas interessadas em aplicar métodos clássicos de treino da mente para cultivar clareza, sensibilidade e conhecimento.

 

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