O objetivo é atingir um estado contínuo de bem-estar?
Uma das mais insidiosas expectativas na prática da meditação é de que se trata de atingir um estado contínuo de bem-estar. Essa esperança pode vir tanto de promessas feitas pelas tradições contemplativas quanto de regimes político-econômicos como o neoliberalismo, onde “você não é feliz apenas por não estar se esforçando o bastante”.
Isso que chamamos bem-estar é um estado complexo e interdependente: um aglomerado de elementos dinâmicos que se aglutinam naquilo que pode ser chamado “causas e condições”. Cada componente é, por sua vez, dependente de outros ingredientes de tal forma que todas as coisas vêm a ser em cima do ombro de outras coisas, muitas das quais desconhecidas e/ou incontroláveis.
Assim é que o bem-estar não vem de um único lugar, seja ele da mente, seja ele do corpo, seja ele do dinheiro, seja ele do individualismo ou do coletivismo ou do que faz sentido. Eventualmente pode surgir prioritariamente de algo específico, mas o olhar mais rigoroso verá que esse algo é sustentado por outros algos, impermanentes e dependentes de ainda outros algos, e assim por diante. Se montanhas feitas de rocha são frágeis, o que dizer de estados feitos de imaginação, sonho e confusão, voláteis como éter e desprovidos de substancialidade, como o vácuo.
A promessa de que estaremos sempre bem é evidentemente falsa (e para alguns poucos bastante lucrativa). Já foi dito que qualquer pessoa que se disponha a cuidar de si de modo genuíno (o que inclui ter outras pessoas em mente) irá descobrir que isso que chamamos autoconhecimento ou atualização é repleto de más notícias. Se as estruturas neuróticas não têm existência intrínseca isso não quer dizer que elas não existem. Se as emoções são impermanentes, isso não quer dizer que elas não ocorram e que não possam perdurar durante mais tempo do que alguém pode suportar.
A prática da meditação, em minha opinião, não tem no bem-estar seu foco primário. Ter no bem-estar o foco principal frequentemente conduz a mais sofrimento, por razões variadas, desde noções disfuncionais do que o bem-estar significa e como deve ser mantido, passando pela dor de antecipar que o bem-estar está sempre em risco de morte, ou oscila quando da mudança das causas e condições que o sustentam, sendo estas muitas vezes indiferentes ao nosso bem-estar ou posicionadas além de nossa capacidade de controle.
Creio que o foco principal da meditação é ver melhor, algo que se aproxima mais de um projeto de pesquisa. Como o bem-estar vem a ser? Como é perdido? Como alguém se relaciona com o desejo pelo bem-estar? Como alguém se relaciona com o que não é sentido como bem-estar? O que é bem-estar? Onde começa? Onde termina? Quantas pessoas e quanto meio ambiente são necessários para que uma pessoa experimente bem-estar durante algum tempo? Essas são perguntas que a meditação irá fazer. E elas podem provocar mal-estar oriundo, por exemplo, da constatação de que o que entendemos como bem-estar pode não passar de um estado de apego altamente alienado cujos benefícios pessoais são mantidos em parte devido ao prejuízo e trabalho forçado de muitos, incluindo o saque do meio ambiente. Más notícias, não?
Ver melhor quem se agarra ao bem-estar e deseja o bem-estar ao ponto de desconsiderar o bem-estar de outras pessoas talvez seja uma das funções da meditação em sua faceta ética. E é possível que ao investigar esses elementos alguém possa descobrir formas de bem-estar menos violentas e alienadas, o que efetivamente pode aumentar a qualidade do estar, isto é, do permanecer lúcido e lúdico em meio aos ciclos de mudança que, invariavelmente, iremos experimentar. Então, quem sabe, a meditação não seja exatamente para a felicidade, mas que a felicidade seja um efeito colateral de uma prática genuína de ver melhor como os estados que surgem e se sucedem como experiência pessoal e coletiva vêm a se produzir e a se desfazer, e o que isso implica para quem os experimenta.
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