Resumo: O treino da mente pode ser visto como uma pesquisa apurada da experiência em geral e daquilo que chamamos de "mente" em particular. A pesquisa em meditação compreende as aparições da mente, os fenômenos. Esse ato envolve o estudo e a prática em três áreas: meditação, sabedoria e ética, sendo esta última essencial para consumar as duas primeiras.
O treino da mente para a meditação pode ser visto como uma forma de pesquisa. Seu objetivo, semelhante a muitas outras formas de pesquisa, incluindo acadêmicas, é conhecer algo em profundidade a partir de certos critérios. Assim como em um mestrado universitário, ela forma pessoas capazes de pesquisar tudo aquilo que denominamos experiência.
Algumas definições são importantes no início deste texto. Por pesquisa, quero dizer uma capacidade de olhar através das coisas: um modo de olhar para o mundo e querer saber mais sobre seus princípios, funcionamento, como se mantém, como pode ser experimentado, manipulado e compreendido. Essa capacidade parte de algo vital: conhecer – uma sensibilidade que, em última instância, pode significar a diferença entre viver e morrer ou, melhor, viver e morrer bem. Naturalmente, esse é um projeto baseado em uma boa dose de esperança. Para começar, é preciso verificar se podemos de fato conhecer melhor o que nos aparece. Dada a história do desenvolvimento humano, podemos provavelmente confiar que sim. Isso implica reconhecer que muitas coisas parecem ser o que não são e que temos a capacidade de nos enganar. Esse conhecimento sobre enganos e autoenganos sugere que sim, podemos conhecer melhor.
O objeto de pesquisa que queremos conhecer melhor no treino da mente é, obviamente, a mente. Palavra fácil de dizer, mas de difícil definição, aquilo que denominamos “mente” está aí, na capa dos livros mais vendidos, na boca das pessoas, das cientistas, dos meditadores, disponível em várias línguas, talvez em milhares delas. Ainda assim, ela segue um tanto escorregadia de capturar e de compreender. Se você está lendo este texto, talvez esteja escutando estas palavras enquanto as lê, e isso – ler, ouvir o que se lê e refletir sobre o que este texto quer dizer – participa da experiência que chamamos de mente. Mas o que é ela? O que mais é ela? E por que se agita, apaga, persiste apesar de nós, faz de nós “gato e sapato,” e nos leva a imaginar coisas que não existem ou que podem vir a existir? Todas essas perguntas animam uma pesquisa sobre a mente.
Uma pesquisa começa com algo em mente. Esse algo é um estado de consciência focado. Outra maneira de dizer isso é que toda pesquisa começa na mente e com uma aparência em mente. No treino da mente, pesquisamos a mente, isto é, suas aparições. A mente é aquilo que aparece e desaparece e que, ao fazer isso, “brilha” ou “reluz". Não é por acaso que os gregos inventaram uma palavra para essa natureza da mente, a de aparecer. Eles a chamaram de phainomena (fenômenos), cujo radical, phai-, é o mesmo que dá origem às palavras fósforo, fantasma, fantasia, epifania, teofania, fóton, fotografia, diáfano e fenomenologia – todas relacionadas a coisas que brilham ou aparecem aos sentidos.
Assim como no mestrado acadêmico, a pesquisa em meditação produz um pesquisador ou uma pesquisadora, alguém que se dedicou a aprender a conhecer as aparências. Nesse sentido, os objetos de pesquisa acadêmica e contemplativa são similares. Outra semelhança entre os dois tipos de projetos é que ambos dependem de algo com o qual as pessoas em formação precisam se ambientar: conhecer. Antes de todo o conhecimento que pesquisou ou irá pesquisar, há essa capacidade primordial – conhecer – através da qual diagnóstico, métodos e finalidades podem ser pensados, estruturados, testados e compartilhados. Antes do substantivo, há um verbo. Ou, talvez, ao modo do I Ching, os substantivos são verbos, mas essa é outra história para outro texto.
Temos então a figura da pessoa que se dedicou a pesquisar. Isso quer dizer que ela se dedicou antes de mais nada a compreender a pesquisa. Uma pesquisa não é composta só por seus objetos de curiosidade, mas por toda a estrutura que dá suporte e condiciona o ato da pesquisa. Pois bem, o mestre ou a mestra, familiarizando-se com a capacidade de conhecer e investindo alguma fé nela, faz sua pesquisa. O que essas pessoas muitas vezes descobrem, talvez na forma de uma desconcertante epifania, é que não são mestres ou mestras porque conhecem muitas coisas. O mais provável é que durante a pesquisa notem, para o benefício de sua humildade epistêmica e rigor intelectual, que sabem menos do que pensam – ou que o que pensam saber bem reside em um universo de outros saberes sobre os quais ainda não se debruçaram. Isso de modo algum deve gerar um tipo de relativismo ingênuo e niilista, um ceticismo dogmático em que a dúvida é a única verdade e ninguém sabe nada sobre nada. Sem meias palavras, direi que esse tipo de pensamento não apenas irá se autorefutar como será frequentemente utilizado em estratégias de captura e manipulação do imaginário para fins políticos, geralmente obscurantistas.
Se um mestre ou mestra é alguém que se dedicou a aprender a conhecer, não se reconhece por esse título porque conhece muitas coisas, mas porque se abriu para a capacidade de conhecer e fez dela um espaço de experimentação e aprendizado infinitos. Por isso, a pesquisa vai além de manipular dados, informações, conhecimentos e teorias. Antes de tudo, sua essência é aprender a conhecer – um ato ao mesmo tempo epistêmico, estético e ético. Assim, um mestre ou mestra aprende a conhecer, interessando-se na interrelação desses três domínios e ciente das repercussões de sua pesquisa em cada um deles.
Por fim, no caso do treino da mente em meditação, normalmente diz-se que ele é composto por três treinamentos: em meditação, em sabedoria e em ética. Em minha experiência, pude ver que muitas pessoas acreditam e afirmam que os dois primeiros treinamentos são os mais difíceis. Em minha opinião, estão enganadas. Em primeiro lugar, muitas dificuldades nos treinos em meditação e sabedoria surgem por deficiências ou dificuldades éticas. Em segundo, a meditação e a sabedoria são vividas no mundo e medidas por suas habilidades éticas. Assim, penso que, dos três treinamentos – considerados os mais elevados, ao menos no Budismo – o treino em ética é o mais difícil. Como essa consideração informa nossa pesquisa? Pedindo clemência pelo fechamento com um toque de humor, talvez tenhamos que pesquisar!
[Este texto deriva de uma nota sobre o mestrado em filosofia que no momento curso na UFRN. A nota, chamada A pesquisa no mestrado: o que é? ao que serve?, pode ser lida na íntegra no meu perfil @brenoxis no Instagram.]
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