Resumo: A filosofia madhyamaka oferece uma proposta curiosa: liberar a fixação em teses extremas para vivenciar melhor o caráter não-definido da experiência a fim de diminuir o sofrimento. Analisando crenças dogmáticas em objetos não-evidentes e dicotomias rígidas, Madhyamaka nos convida a apreciar uma flexibilidade intelectualmente rigorosa e eticamente consciente. O desafio está em como viver entre os extremos sem cair no niilismo e no relativismo. Este texto elabora essas questões e sugere práticas para experimentar a proposta madhyamaka.
O pensamento da escola budista Madhyamaka rejeita fixações a convenções vistas como absolutas, diagnosticando que a fixação aos extremos da conceitualidade está na raiz do sofrimento humano. Madhyamaka sugere que nossa mente tem uma tendência de prender-se a conceitos dicotômicos e maniqueístas em busca de segurança e estabilidade. A análise madhyamaka defende que essa lógica binária não captura ou reflete fidedignamente a realidade da experiência. Madhyamaka, então, propõe uma liberação desses extremos por meio de um “caminho do meio” — um tipo de prática (sânsc. sadhana) desconstrucionista que permite uma visão flexível e solidária, não confinada a juízos rígidos e totalizantes.
Ao estudar as instruções madhyamaka minha primeira grande dúvida, que depois descobri ser frequente entre outros estudantes, foi: Como posso aplicar a análise madhyamaka ao cotidiano sem perder a sensação de propósito ou cair no niilismo? Praticantes e críticos podem questionar se, ao abrir mão das certezas absolutas, não estariam renunciando também ao sentido de compromisso e valor nas próprias ações. Madhyamaka, no entanto, distingue a vacuidade (sânsc. sunyata) dos fenômenos, isto é, o diagnóstico de ausência de existência intrínseca das aparências, de um vazio de sentido. Vacuidade, aqui, não é a ausência de valor ou de realidade, mas sim um olhar estabelecido após o discernimento de que os fenômenos são desprovidos de uma essência fixa, imutável e existente por si mesma em total independência. Para Madhyamaka é justamente essa ausência de essência fixa que permite a fabricação e manutenção dos valores e realidades, ao menos enquanto persistam as causas e condições que dão-lhes sustentação. Esse entendimento revela uma forma incomum, possivelmente terapêutica, de engajamento com o mundo, ou seja, com as aparências. Em um tratado¹ madhyamaka atribuído a Nagarjuna lemos: “Embora levem a sério a maneira como as coisas são e não violem isso, ainda assim [os sábios] conduzem seu discurso por meio de nomes e conceitos, de acordo com a verdade convencional”.
A prática de vacuidade, chamada por Rob Burbea de "visão que libera", implica não apenas ser capaz de ressignificar as aparências, mas enxergar a realidade sensorial antes da interposição de formulações rígidas que normalmente usamos para organizar a sensorialidade. Um sentido disso é que Madhyamaka não nega a realidade sensorial, as aparências que surgem aos sentidos, mas que um melhor discernimento (sânsc. prajna) irá notar que essas aparências são vazias de nossas convenções. Em suma, nosso entendimento convencional (sânsc. samvrti) depende da linguagem, do vocabulário que dispomos e do peso existencial (greg. phatos) que os enunciados têm por causa dos valores de uma certa cultura, ideologia ou imaginário. Outra maneira de elaborar esse ponto crucial é que muitas vezes não estamos experimentando o fenômeno pelo que ele é, mas sentindo os efeitos do modo como o fenômeno nos parece após sua redução inconsciente e automática ao entendimento habitual ou norma convencional.
Quando o Madhyamaka diagnostica a fixação aos extremos como causa do sofrimento e contemplamos intelectual e existencialmente esse diagnóstico, chega a dar uma vertigem (greg. aporia). Parece até que não conseguimos raciocinar fora do extremismo. Essa vertigem pode ser um tipo de confusão causada pelo assombro gerado pela precipitação à imaginação onde nos vemos sem referências, sem convenções para apoiar nossas identidades. Uma pessoa interessada na metodologia liberativa madhyamaka pode e muito provavelmente deve perguntar: Como posso treinar minha mente para ver as coisas sem me apegar a conceitos rígidos, mas também sem me perder em um vazio absoluto? Essa pergunta reflete um terror atávico: o da inexistência, precisamente uma das crenças consideradas extremas por Madhyamaka. Porém, para essa escola, vacuidade não significa que não há realidades ou sentidos. O que o discernimento madhyamaka estabelece é que, após análise, não é possível achar realidades e sentidos que tenham existência própria (sânsc. svabhava). Há uma grande diferença entre dizer que as coisas existem ou não existem e afirmar que existência e inexistência não podem ser estabelecidos como entidades absolutas. Para Madhyamaka os fenômenos, sejam percepções físicas ou construtos mentais, não existem isoladamente ou por si mesmos. Dizer que eles não têm um sentido primeiro não é defender que eles não têm sentido ou que não podem ter sentido. Quem entende esse ponto entende, ao menos intelectualmente, a lógica do "Meio" (sânsc. madhya), uma visão que enxerga as visões (percepções, formulações, teses, etc.) como vazias de existência de eu próprio, isto é, de essência imutável determinada por si própria. Para Madhyamaka e para o budismo como um todo, essa análise revela a razão da constante mudança que experimentamos não apenas em nossos ambientes, mas em nossos corpos, mentes e identidades. Se todos os fenômenos são interdependentes e não têm existência própria, seu vir-a-ser e permanência só podem ser desprovidos de fixidez, algo que experimentamos como transformação, mudança, mutação e morte, termos que os budistas agrupam sob a palavra "impermanência" (pali anicca). Não por acaso, no budismo, a contemplação adequada da impermanência é sugerida como preparativo para a investigação e reconhecimento da ausência de existência intrínseca dos fenômenos. A hipótese epistemológica é simples: quem contempla a impermanência até seu fim lógico depara-se com a inferência da ausência de existência intrínseca dos fenômenos. Ao meu ver, proponentes madhyamaka defendem que o correto entendimento de sua terapêutica (sânsc. upaya) pode produzir pessoas menos dogmáticas e mais compassivas, menos autocentradas e menos dependentes de categorias fixas para viver bem.
Permitam-me insistir: a ausência de existência intrínseca (vacuidade) é um convite a um engajamento mais interessado na experiência da realidade. O filósofo Bruno Latour pode ser útil aqui. Em 2004, Latour publicou um artigo chamado Por que a crítica perdeu a força? De questões de fato a questões de interesse (pdf) no qual defende uma redefinição dos instrumentos críticos no campo dos estudos das ciências (ing. sciences studies). O resumo do artigo declara que ele faz isso movido pela onda de desconfiança em relação aos fatos científicos, do revisionismo quase instantâneo e de teorias da conspiração de todo tipo que nos assolam. Sua argumentação é inspirada pelo psicólogo William James: substituir questões de fato por questões de interesse e retornar ao que James chamou de "atitude teimosamente realista", qual seja, não se afastar dos fatos, mas se aproximar deles; não desconstruir nem tirar a força dos fatos, mas acrescentar a eles ainda mais realidade. "Acrescentar mais realidade" é uma frase possível no campo semântico da vacuidade. Pode-se acrescentar mais realidade, o que não necessariamente é um processo meramente aditivo, porque a realidade não está definida a priori, não é monolítica nem absoluta. O que chamamos de "realidade" é um campo sem bordas de experiências abertas onde sentidos podem ser dados, atualizados e destruídos. Sendo as experiências abertas, podem ser encapsuladas pelas linguagens convencionais, ao menos durante algum tempo e sob certas condições.
Para Madhyamaka, o reconhecimento de que todos os fenômenos são vazios de existência intrínseca não é meramente epistemológico. Madhyamaka não é uma filosofia no sentido comum. Ela não está no negócio de pensar por pensar. Pelo contrário, assim como o Pirronismo grego, ela faz um uso soteriológico do pensamento, ou melhor, do conhecimento discernente. Seu fim não é estabelecer uma teoria filosófica, ela não possui uma. Seu fim é ser um instrumento de alívio e liberação de um tipo específico de doença, aquela do entendimento, do dogmatismo, da fixação a visões, teses e formulações extremas, diagnosticadas como causas de muitos tipos de sofrimento e conflito. Nesse sentido, Nagarjuna, considerado o iniciador do projeto madhyamaka, não deve ser visto como um filósofo, se por filósofo definimos um pensador teorizante em busca de princípios últimos e universais - sejam eles existentes ou inexistentes - os quais defenderá com meios estritamente racionais. Nagarjuna, assim como o indiano Siddharta Gautama e o grego Pirro de Élis, deve ser visto como um tipo especializado de terapeuta interessado em atender e tratar doenças do entendimento, ou seja, vícios da filosofia como dogmatismos positivos ou negativos baseados, como diz Oswaldo Porchat no seu Vida comum e ceticismo, na crença na divindade da razão especulativa². Curiosamente, tanto na Índia quanto na Grécia da Antiguidade esse era o telos, o fim da filosofia: tratar doenças do entendimento e das paixões. Entre os gregos esse processo era chamado de askesis (ascese); entre os budistas, um termo que pode designar esse percurso é sadhana (prática).
Assim, longe de dizer que nossas ações são vazias de significado e desimportantes, Madhyamaka sugere o oposto e advoga responsabilidade na ação. Mesmo uma pequena ação pode ter grandes consequências em um universo onde todas as ações estão interconectadas. Diferentemente do que o niilismo sugere, a vacuidade pede conscienciosidade em meio à ação ética uma vez que está na qualidade do agir e do não-agir uma condição determinante para o bem-estar e para o sofrimento. Vemos aqui o sentido ético da prática complementando decisivamente a epistemologia desconstrucionista de Madhyamaka. Não se trata, pois, da desconstrução pela desconstrução. Para Madhyamaka, a análise está ao serviço de uma finalidade terapêutica instrumental para uma existência digna dos seres sencientes, isto é, de uma "arte de viver" na qual as faticidades e vicissitudes que experimentamos podem ser reconhecidas de maneira mais habilidosa e menos condicionada, num exercício de subjetivação ao mesmo tempo rigoroso e maleável que se vive num mundo partilhado e instituído por normas e valores que não existem por si mesmos, mas que podem ser benéficos ou maléficos e que estão aí para ser analisados não apenas para sua desconstrução última, mas para demonstrar a capacidade de arejamento e atualização humanos e permitir a queda da idolatria e a possibilidade de abertura (greg. aisthánomai), pensamento e transformação. Portanto, a lógica ou terapêutica madhyamaka não é uma afirmação de desapego ou distanciamento extremos, mas uma recordação de que nossas percepções importam, mesmo as mais ocas delas. Madhyamaka, assim como o Pirronismo, não produz sujeitos niilistas, mas pessoas implicadas em relações de grande potencial, mesmo quando esse grande potencial não passa de ato humilde ou de uma aparentemente insignificante anomalia.
Por fim, sei que este texto não pode abarcar uma quantidade de nuances consideradas absolutamente importantes por eruditos e eruditas da escola Madhyamaka, como suas distinções internas. Peço um pouco de compaixão por minhas limitações. Tomo para mim os erros conceituais e inconsistências que este texto por ventura tenha. Todos os méritos, se existem, devem-se aos professores e professoras que generosamente partilharam comigo instruções sobre o tema. Finalmente, compreendo ainda que pode haver uma dúvida de como praticar madhyamaka, para a qual há muitas respostas, mais ou menos diretas. Recomendo às pessoas interessadas no estudo de Madhyamaka partir dos comentários mais renomados dos textos primários. Para tanto é considerado favorável encontrar um professor ou professora que possa ajudar a organizar o estudo dessa escola notoriamente incomum, surpreendente e complexa.
No mais, como há muitas formas de estudar e de praticar madhyamaka, permitam-me sugerir três práticas que podem ser úteis para pessoas que não são exatamente iniciantes, mas que por sorte também não têm lá grande experiência. Pratiquem com cuidado. Não tomem as práticas como fins em si mesmas e, máxima atenção, lembrem-se de que vocês estão mexendo em algumas coisas. Nem sempre mexer nas coisas é a melhor coisa a fazer, assim como nem sempre a melhor coisa a fazer irá produzir no início clareza e bem-estar. Em caso de dúvida, o melhor é não praticar e buscar suporte de pessoas de bom coração que reúnam conhecimento intelectual e prático em instruções meditativas de modo geral e madhyamaka em particular. Contudo, se optar por experimentar as sugestões abaixo, aplique-se com uma mente de aprendiz: aberta, curiosa, metódica e moderada. Não prossiga com nenhuma delas como práticas regulares, mas apenas como exercícios laboratoriais que fazemos eventualmente com uma atitude bem motivada, desprovida de ânsia. Em caso de insights ou quaisquer outros tipos de experiência significativa, reporte seus achados aos professores e professoras que acompanham você. Como tenho alguma experiência nas três práticas que sugiro, entre em contato comigo se julgar necessário.
1. Meditação na impermanência dos conceitos: Em um ambiente tranquilo, observe suas próprias crenças e ideias. Pergunte-se: Essas crenças refletem a realidade de forma imutável ou são meios que me ajudam a navegar pelo mundo? Esse exercício permite que vejamos os conceitos como instrumentos mais ou menos hábeis e não como verdades absolutas, ampliando as capacidades de não-precipitação, adaptação e flexibilidade da mente.
2. Prática de suspensão do juízo: Durante um dia, sempre que surgir um pensamento excessivamente duro ou totalizante, pratique uma breve pausa. Pergunte-se: Essa opinião está enraizada em algum apego ou aversão? Como seria observar essa aparência sem me precipitar instantaneamente nela? Essa prática ajuda a cultivar uma mente conscienciosa, menos propensa a subscrever imediatamente reações automáticas, percepções reificadas e teses extremas e fatalistas.
3. Cultivo da equanimidade: Em momentos quando sua mente aparece excessivamente desafiadora e intrometida, como em confusões ou perturbações, tente se posicionar como um observador que se sabe parcial. Pergunte-se: O que acontece com esse estado de consciência se eu nem aceitá-lo nem rejeitá-lo? Essa prática nos ajuda a cultivar uma visão de equanimidade e boa vontade, sem indiferença, mas com uma participação consciente e sensibilidade habilidosa através das quais podemos nos deixar em paz, notando que, apesar das aparências, não estamos verdadeiramente em perigo.
Referências
RAMANAN, K. Venkata. Nagarjuna's Philosophy as Presented in the Maha-Prajnaparamita-Sastra. Toquio: Charles E. Tuttle, 1966.
PEREIRA, Oswaldo Porchat. Vida comum e ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 6.
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Instruções preciosíssimas. Praticarei. Em nossa sessão terapêutica, partilharei as percepções dessa aventura investigativa. Obg! 💐