Aqui estão as notas que coletei nos ensinamentos de Lojong concedidos por lama Sherab Drolma, na Vila Feliz, Pium-RN, entre os dias 9 e 10 de novembro de 2019.
Lojong: uma visão geral
Lojong é uma categoria de ensinamentos de treinamento da mente sistematizada por Atiśa Dīpaṃkara. São, grosso modo, ensinamentos referentes a meditações analíticas (e.g. reductio ad absurdum), shamata, respirações e visualizações que visam preparar a mente para seguir os métodos para realizar o “estado desperto”.
O tema principal do Lojong é a chamada “mente de iluminacão” - bodhicitta -, isto é, no nível de aspiração, cultivar a intenção e métodos para beneficiar os seres a realizar a natureza da mente.1
De acordo com o budismo o sofrimento é um fenômeno condicionado por obscurecimentos mentais, como a crença na existência intrínseca ("si-próprio") daquilo que surge. Grande parte dos métodos budistas, incluindo aqueles do Lojong, buscam a eliminação dos obscurecimentos mentais presentes em ações de corpo, fala e mente.
O Lojong, especificamente, enfatiza a centralidade da mente e atua diretamente na mente de modo a eliminar a "sujeira" que impede o reconhecimento do “estado desperto natural”. Essencialmente os métodos de Lojong buscam unir compaixão e sabedoria. De acordo como o budismo, compaixão sem sabedoria assim como sabedoria sem compaixão são insuficientes.
Primeira fase do Lojong
Em termos de prática, o grosso do Lojong é a contemplação, isto é, meditação analítica, de certos pontos, características e lógicas da chamada experiência de mundo e mente.
Este Lojong2 é dividido em 3 fases. Na primeira são contemplados 4 pontos:
1) a preciosidade da vida humana, 2) lógica e natureza da ação, 3) a experiência de impermanência, e 4) a insatisfatoriedade ou “falhas” da experiência confusa.
O objetivo das contemplações nesta primeira fase, chamada “preliminar”, é gerar em quem pratica uma visão mais refinada acerca da realidade da experiência de mundo e mente, de modo a dar suporte ao exercício de renúncia das causas do sofrimento. Outro objetivo da fase preliminar é gerar condições para sustentar a prática em meio às adversidades e zelar por ela em meio a uma experiência de encantamento e até mesmo paixão pela confusão, preguiça, agitação e assim por diante.
Uma vez que esses 4 pontos foram contemplados suficientemente e suas repercussões lógicas estejam bem impressas na mente, a fase preliminar está cumprida. Quem pratica terá facilidade em se manter no caminho apesar das influências contrárias.
Segunda fase do Lojong
Agora, a segunda fase do Lojong, chamada “prática principal”: o cultivo da chamada “mente de iluminação” - bodhicitta. Preliminarmente, isso significa praticar não apenas para si, mas em benefício de todos os seres para que possam desmantelar e/ou liberar visões extremas e realizar a natureza da mente.
A prática principal de gerar a mente de iluminação divide-se em três estágios. No sentido último, bodhicitta é o reconhecimento da natureza dos fenômenos indissociável de uma compaixão pelos seres. A habilidade da mente de iluminação “dissolve” o hábito de concretude que aparentemente reveste obscurecimentos mentais. Efeito disso: as causas do sofrimento são desmanteladas.
Outro modo de dizer: as aparências não são absolutas, mas impermanentes. Sendo o sofrimento um fenômeno interdependente, pode ser liberado pela sabedoria de uma mente que reconhece a ausência de existência inerente {e.g. "auto", "si-próprio") das aparências. A compaixão é viável porque as causas do sofrimento são desprovidas de essência, sendo portanto impermanentes. Assim, a liberação do sofrimento é possível, e a compaixão, hábil.
Gerando bodhicitta - a mente de iluminação
A geração da mente de iluminação é subsidiada por uma série de práticas no Lojong, desde meditações analíticas, ao cultivo de qualidades, meditações que unem respiração e visualização, shamata, etc. Entre as meditações analíticas, está a investigação das aparências e como vêm a ser. Essa prática visa gerar maior clareza intelectual acerca da natureza dos componentes da experiência comum, como formas, sensações, emoções, percepções, estados de mente e assim por diante, inclusive o referente da palavra “Eu”.
O método de contemplação é basicamente “matutar” no sentido de investigar3, aplicando o pensamento e instrumentos racionais sobre os componentes da experiência em busca de sua “natureza autêntica” até que as repercussões lógicas oriundas da contemplação estejam claramente internalizadas, isto é, permaneçam presentes no fluxo mental sem esquecimento ou necessidade de esforço.
A importância de uma prática como a contemplação analítica pode ser vista por exemplo quando aplicada ao nível emocional. De modo geral, as emoções são percebidas como concretas. Essa confusão, segundo o budismo, está na raiz de muitas aflições e ações inábeis, como a tentativa de lutar contra, se apegar e/ou controlar as emoções - e os efeitos insatisfatórios que essas táticas acarretam. Por outro lado, o Lojong sugere que o resultado da investigação das emoções é o reconhecimento de que emoções não possuem características intrínsecas. Surgiria a compreensão de uma certa liberdade em meio a elas. Quem pratica, sugere o Lojong, vai além de sofrimento e felicidade.
As contemplações analíticas presentes na fase principal do Lojong são aplicadas aos fenômenos, um por um, em busca das características mais essenciais para conferir se de fato existem e se resistem ao método analítico, isto é, de desconstrução. Mas atenção! De acordo com o budismo, compreender a natureza interdependente dos fenômenos é antídoto para a fixação em visões extremas e/ou na existência intrínseca de aparências, como sensações, sentimentos e emoções, por exemplo. Contudo, a fixação na lógica de que as coisas não existem porque não se sustentam [por si mesmas] e são, portanto, impermanentes é considerada equivocada e leva ao extremo do niilismo.
Espera-se que a contemplação analítica de investigar a natureza de fenômenos (isto é, da mente) leve quem pratica a um estado ausente dos extremos das visões, facilitando o “repouso” na chamada “base” ou “chão” da mente, uma realização meditativa na qual a mente fabricada está grandemente inativa. Essa realização é considerada hábil pois facilita enormemente o desvencilhamento da delusão que faz alguém se prender a aparências como sendo reais. Apego e aversão decrescem, e a influência das emoções diminui.
Em resumo, na parte principal do Lojong recomenda-se a investigação dos fenômenos em busca de sua natureza. A partir dessa busca, surgiria uma maior compreensão intelectual4 de que os elementos da experiência não têm existência intrínseca. Com isso, brotaria o entendimento de que a experiência do sofrimento é desmantelável.
Prática de Tonglen e das Quatro Qualidades
Outra prática na fase principal de gerar a mente de iluminação pode ser chamada de “trocar de lugar com o outro”, cujo ápice é o exercício de tomar o sofrimento dos outros e oferecer raizes de virtude e outras qualidades. Essa prática chama-se Tonglen. Nela busca-se tomar o sofrimento dos seres através da respiração5. Na inspiração, são tomadas as dificuldades do outro. Na expiração, são oferecidas qualidades e virtudes para o outro. A base dessa prática é o reconhecimento de que todo sofrimento é vazio de existência intrínseca.
Ainda na fase principal sugere-se o cultivo de 4 qualidades: equanimidade, compaixão, amor e alegria solidária, ou regozijo. Grosso modo, dizem os budistas, quando expressamos essas qualidades, estão contaminadas em alguma medida pelo autocentramento. O budismo prega que essa dependência deve ser superada.
Então além de investigar a natureza dos fenômenos, cultivam-se qualidades que erodem o autocentramento, considerado pelo Lojong a raiz do sofrimento: o hábito do conceito de “Eu” visto como intrinsecamente existente. O cultivo de qualidades como equanimidade e amor, ou a prática de Tonglen, são treinos para solapar o autocentramento.
Equanimidade, compaixão, amor e regozijo, bem como a prática de Tonglen, são treinos para diminuir o hábito do autocentramento. Surgem condições para o reconhecimento da sabedoria que reconhece a natureza dos referentes de palavras como "eu" e "outro". Veja o caso do “Eu”. De acordo com o budismo, isso que se aponta como um eu é resultado de uma composição, portanto o eu deve ser impermanente. Se esse ponto é esquecido o eu é percebido como sendo intrinsecamente existente. Resultado disso: ganância, frustração e sofrimento.
No caso do treino em compaixão, recomenda-se que se tenha em mente uma referência de compaixão, seja qual for. Da meditação nessa referência particular, busca-se expandir a compaixão para todos os demais seres. No budismo, comumente, essa referência é a mãe, que tanto faz por seus filhos.
Em resumo, há três níveis de prática de aspiração para a mente de iluminação: equanimidade, Tonglen e dar mais importância ao outro do que a si. Pode-se acrescentar ainda outra prática: flagrar como o ego se sente e se comporta como um rei. Na prática de flagrar essa idolatria ao conceito de eu, ou autocentramento, sugere-se que se busque apreciar com igual interesse todas as demais pessoas. Isso é chamado trocar de lugar: todo o cuidado que alguém tem por si é oferecido ao outro. No Lojong, a prática de Tonglen é o cume dessa lógica-ética.
Todos esses meios, desde a primeira fase até os inúmeros métodos da fase principal do Lojong, visam mudar hábitos. Isso depende da recordação do que deve ser estabelecido e repetição no sentido de manter essa lembrança no campo da conduta cotidiana, isto é, para além da prática formal sentada. Dessa maneira, a todo instante é mantido o treino da mente de iluminação e qualquer circunstância torna-se cultivável e conducente ao acúmulo de mérito e sabedoria. Em suma, ao longo do dia e fora da prática formal sentada, mantém-se como 'pano de fundo' da consciência a motivação de gerar e cultivar a mente que busca a natureza última dos fenômenos em benefício de todos os seres - bodhicitta. Assim, diz o Lojong, purificam-se obscurecimentos enquanto mérito e sabedoria são acumuladas.
Terceira fase do Lojong
Agora a terceira e última fase ou etapa do Lojong: a dedicação do mérito das ações virtuosas geradas pelas práticas para os demais seres. Shantideva diz que são incomensuráveis os méritos gerados via ações virtuosas que são dedicados pela mente de iluminação para os seres. O Lojong subscreve essa lógica e, portanto, recomenda que toda prática seja encerrada com a dedicação dos méritos. Entre as funções dessa prática de conclusão, estão antidotar o materialismo espiritual - a ideia de que alguém é especial por praticar espiritualidade - bem como proteger o mérito acumulado de eventuais confusões por parte de quem pratica.
* * *
[As notas possuem algumas interpolações minhas, pelas quais sou inteiramente responsável. Contudo, confio que grosso modo as anotações estão condizentes com aquilo que ouvi da lama. Que eventuais méritos que essas anotações possam ter frutifiquem na mente dos seres como perfeita realização da mente de iluminação. BX]
NOTAS:
1. A geração de bodhicitta, a mente de iluminação, possui 2 aspectos: relativo e último. O nível de aspiração está no aspecto relativo, juntamente com o nível da ação.
2. Ainda que o Lojong ascenda de Atiśa, foi posteriormente reorganizado por outros praticantes. Chekawa Ieshe Dorje é considerado o criador do clássico Lojong composto por 56 aforismos.
3. Frequentemente fazendo uso do método analítico conhecido pelos gregos como reductio ad absurdum.
4. De maneira geral o Lojong aposta algumas de suas fichas na capacidade de pensar bem, de pensar, isto é, de raciocinar, medir, usar os instrumentos racionais (e.g. análise, inferência) para conhecer melhor a experiência, isto é , a própria mente. Usa-se o pensamento para pensar melhor, isto é, uma aproximação (e.g. intelecto) de como a mente e a experiência vêm a ser. Portanto, trata-se de um tipo de investigação de intenção científica. O Lojong parece crer que mais realismo na experiência cotidiana por ser útil para evitar certas ações, vistas pela linhagem (Serlingpa, Dharmarakṣita, Maitrīyogi, Atiśa) como sendo inábeis ou contraproducentes. A fim de conhecer melhor os elementos que "compõem" a experiência (e.g. sofrimento), o Lojong sugere diferentes métodos, sendo, no nível do intelecto, a análise o instrumento principal de sondagem. A pessoa passa, por exemplo, a aplicar aos eventos cotidianos de corpo, fala e mente o instrumento conhecido pelos gregos como reductio ad absurdum, em busca de seu "autêntico modo de ser".
5. Grosso modo, Tonglen faz uso do corpo (respiração) e da mente (motivação, visualização).
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