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Foto do escritorBreno Xis

Incêndio no Parquinho (da Meditação)

Atualizado: 14 de abr. de 2021


Busquei não me envolver romanticamente por um bom tempo. Uma razão disso era a fé de que iria perder uma certa liberdade. Outro motivo: queria priorizar outras atenções, notadamente a “meditação”.


Fui exposto à via da vacuidade. Meu treino, entre outros métodos, envolvia o estabelecimento do chamado “calmo permanecer”. As instruções, muitas vindas de monges, diziam que deveria abrir mão do desejo, das fixações, das fantasias. E assim busquei fazer, com dificuldade.


A vida, entretanto, ficou mais fácil. Havia certa estabilidade em meio às aparências. Isso me tornou mais destemido mas também mais distante e arrogante. Um senso de superioridade se instalou, achei que tinha todas as respostas que me interessavam.


Então deixei entrar as pessoas de volta em minha vida. Queria compartilhar com elas meus aprendizados, visões e um pouco do meu coração. Elas trouxeram seus ouros e esgotos e fizeram a terra tremer sob meus pés com suas dores, certezas, perguntas, inovações...


Meus professores tibetanos dizem que há 3 treinos fundamentais de meditação: unidirecionalidade, natureza da mente e ética. Quando deixei as pessoas entrarem aprendi que o treino em ética era o mais difícil.


Com unidirecionalidade experimentei estados de bem aventurança e clareza. Vivenciei miríades de mundos mágicos, sonhos lúcidos, aspectos da mente como instantaneidade e vacuidade. Isso me ajudou socialmente... Até que resolvi ouvir pra valer as demandas das pessoas à minha volta.


São muitas as demandas, vocês sabem. Racismo, homo e transfobias, elitismo, materialismo espiritual, fascismo, misoginia, políticas econômicas desastrosas e mortais - todas essas construções foram aparecendo, tremendas, violentas e frágeis. Por instinto, busquei me refugiar na estabilidade da mente, na não-conceitualização, na ideia de que as coisas são como são.


Depois de algum tempo, meu coração começou a doer. Ocasionalmente, uma tristeza difusa assombrava meu peito e flagrei-me aplicando visões e métodos para esvaziá-la e não senti-la. Tornou-se minha esfinge. Frequentemente aparecia “do nada”, para me devorar. Mas era apenas uma aparência, certo? Eu não precisava me responsabilizar. Não havia o que decifrar.


Um dia, a casa caiu. Dei-me conta de que estava usando a meditação para me separar do mundo, para não viver a experiência humana. O mundo era a mente. Do que eu estava fugindo? Do que eu tinha medo? Passei a usar o treino para cozinhar questões como essas.


Deixei de lado os textos de meditação e passei a estudar outras áreas. Descobri as questões de gênero, as falácias do liberalismo econômico, novas formas de comunicação, a clareza da alta sensualidade, pessoas fascinadas por ontologia, visões acerca de visões, etc. É fácil dizer que todos esses fenômenos são vazios. Mas o que isso significa eticamente?


Não demorou, cruzei os resultados preliminares desta investigação com meus medos. Havia me reorientado para equilibrar a visão da vacuidade numa outra ética que incluia sentir os medos e demais emoções sem aceitar ou rejeitar. Rapidamente, a atenção à sensibilidade tornou-se uma de minhas práticas principais.


Em minha experiência, há uma inteligência na sensibilidade. Quando passei a dedicar conscienciosidade ao corpo (sensações, sentimentos e emoções), encontrei nele grande ciência. Chamei uma dessas ciências de “atravessamentos”. Meu corpo é “atravessado” por marcas, cicatrizes, feridas, condicionamentos, finitude, e assim por diante.


Tomei esses atravessamentos como caminho. Precisei aprender a vivenciá-los, um projeto em curso, talvez por vidas. Cuidadosamente fui me propondo a experimentar todas essas contrações, todos esses medos, todas essas violências sociais que me chegavam direta e indiretamente. Minha prática pegou fogo.


Foi neste momento que constatei que no meu caso “descer à vacuidade” não bastava. Era preciso “voltar” e ter com o mundo humano em suas estruturas vazias e feitas de concreto, carne e lágrima. Descobri outros que haviam feito esse movimento. “A vacuidade”, diziam, “é forma”. Voltei a dançar, beber, brincar, buscar me apaixonar, todos os “vícios” vazios que havia pretendido abandonar. Aspirei abrir o peito e ouvir melhor. Reforcei o treino em atenção, agora associado a elementos éticos, estéticos e sensuais. O centro de meditação passou a ser a interação com as pessoas.


Este corpo que habito, que imagino ser eu, não passa de uma joia a ser pulverizada em outras jóias. O meu tempo neste mundo sustenta-se num fio de sonho feito de facas de corte. Cada encontro com qualquer pessoa, para mim, é uma graça. Por um instante frequentemente revelador vemos por outros olhos, tocamos outras peles, dialogamos outras compreensões.


Neste momento de minha vida, quando morte é próxima, essa parece a questão cara ao meu coração: ter com as pessoas. Nunca foi tão difícil meditar. Simplesmente ao aspirar iniciar o treino em ética desvendou-se em mim toda sorte de fenômenos desconhecidos, entre os quais uma quantidade de carências, pressupostos tomados acriticamente, inabilidades interpessoais, e assim por diante. Foi como se uma flor um tanto doída e desastrada brotasse em meu olhar.


Cada um de nós, penso eu hoje, fará de algum modo um caminho de aprendizado. A educação precisa voltar a compreender-se como cultivo e não apenas como apanhado de respostas prontas que devemos decorar e replicar como robôs. Entrei na via da meditação buscando paz, descobri que estava me protegendo de pendências das quais não podia fugir, atualizei visões e métodos com meus professores e professoras, adentrei novamente o mundo para me dar conta do peso dos atravessamentos e de sua vacuidade. Acabei chorando junto de outros e me apaixonando terrivelmente. Mil carências ocultas vieram à tona. Minha prática se incendiou. E eu morri... de medo, de saudade, de alegria - e continuo a morrer.


Quem sou eu é uma pergunta crucial que agora está em segundo plano. Não sou tão importante. Posso eventualmente descansar de mim e morrer. Descobri que morrer é relativamente fácil; o difícil para mim é renascer. Renascer é perrengue. Toda sorte de atravessamentos pode ocorrer. Aspiro lidar com cada um deles e fazer desta vida o centro de meditação. Seguramente terei que cair em alguns buracos. Esta é uma das artes - cair -, tanto em relação a nós mesmos, quanto em relação aos outros. Felizmente buracos e quedas são interdependentes.


[Esta confissão, escrita à mira da aspiração do amor, não seria possível sem você, Velhote. Agradeço por tudo.]

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4 Comments

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Thiago Vallim
Thiago Vallim
Sep 14, 2020

Ah, mas que delicadeza de texto vivo partilhastes conosco!

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Breno Xis
Breno Xis
Nov 11
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Thiago, obrigado por suas palavras. Sei que vêm de um praticante dedicado e atento. Por isso, são ainda mais relevantes para mim. Agradeço por sua generosidade animadora. Um grande abraço!

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Rebecca Pelagio
Rebecca Pelagio
Aug 10, 2020

gosto tanto dos seus escritos! 💚 obrigado por sua vulnerabilidade

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Breno Xis
Breno Xis
Nov 11
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Obrigado, Rebecca! Fui aprendendo com a meditação e com o contato com vocês, pessoas caras ao meu coração, a importância e o lugar da vulnerabilidade. Muitas vezes, no contexto das fases de Reconhecimento e Abertura para a Inquirição dos fenômenos, especialmente daqueles percebidos como mais aflitivos e desconcertantes, a vulnerabilidade participa da experiência e não, ao meu ver, não deve ser driblada. O reconhecimento e a abertura para ela ilumina a conscienciosidade e nutre a mente e o coração.

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