Lembro de observar os casais. Comportamentos cativavam minha atenção: cuidados, distâncias, ausências, violências. Aquele casal na mesa não conversa; ele não dá atenção para ela. Aquele casal na porta do cinema é o corpo da cumplicidade. Havia as separações. Um dia um casal com duas décadas de convivência se partia. Havia modos bonitos de se partir, e modos desastrosos.
Essas coisas me chamavam a atenção. Buscava nessas coisas referências. Queria aprender com vocês a saber como evitar desastres. Não queria replicar o que me pareciam erros. Queria reproduzir as pontes faiscantes entre corpos diferentes. O ardor. O cuidado. A atenção. E é claro que fracassei.
Porque uma coisa é, por assim dizer, a teoria, enquanto outra é a prática. Pode-se ler muito sobre o oceano e isso é ótimo. E ainda assim nunca ter entrado no mar. Pode-se ler muito sobre o canto dos pássaros e isso pode ser maravilhoso. E ainda assim nunca ter parado para ouvir, realmente ouvir, com atenção e zelo, o canto dos pássaros. Meus mapas, aquilo que aprendi com vocês e tentei reproduzir ou evitar, essas coisas foram úteis mas viver, viver é maior que isso. Viver é um abismo devorador de fórmulas e preconcepções. (O que não significa que mapas não tenham o seu valor. Penso que esse seja um ponto pacífico.)
Porque os mapas não me davam o corpo daquilo. Os mapas me davam, em certa medida, a mente daquilo. Os conceitos daquilo, as medições, as listas, as categorias, os sentidos, os princípios, mas não o corpo. Os mapas não me davam o corpo que era a vivência do inesperado, o flagrante não-saber, o momento muito agudo de se perceber num limite que não se sabia ter, as perplexidades desconhecidas. Os mapas podem falar disso tudo, elaborar isso, mas a vivência, o corpo, as sensações, os sentimentos, as emoções, os estados de consciência, ou seja a experiência vivida no descompromisso da vida com meus planos, ou minha agenda, bem, os mapas não podiam me preparar - salvo no nível intelectual - para isso que é acordar mais um dia.
Viver as relações entre seres que se sentem únicos, separados, imediatos, conscientes, emocionados, inseguros, concretos, vazios, ausentes… Viver a relação com seres que ardem e apagam, que gritam e silenciam, que se aproximam e apunhalam, que beijam protocolarmente, que possuem e não possuem. Em suma, seres precários e nebulosos. Como faz? Não sei, mas no momento presto atenção. Penso essas questões que ditam meu modo de me relacionar com vocês e comigo mesmo, e, portanto, com a mente.
Mas para pensar é preciso cuidado, porque pensar é perigoso. Pensar pode paralisar. Pensar pode prender. Pensar pode ser fuga, pode ser extraviamento em meandros e sistemas fechados, dogmas, delírios. É possível pensar e nunca pensar. Os seres humanos são pensantes mas nem todos são pensadores. Pensar implica, entre outras habilidades, buscar a relação entre as coisas, e as coisas. A teia possível entre as aparências, experiências, as conexões e, quem sabe, a invenção (invenção?) de sentidos. Pensar a vida. Inventar a vida. Penetrar a mente e a experiência com o aparato que sustenta e alimenta a pensação. Nada disso é banal. Há algo agudo e criativo, uma espécie de poder, nessa habilidade que para nós humanos é uma ocorrência comum e frequentemente incompreendida. Portanto, a atenção.
A atenção não é um pensamento. A atenção não é um mapa. Não é um construto conceitual. A atenção é prévia aos códigos sociais, ela nem é exclusivamente humana. Vem de muito antes. Com a atenção os pensamentos são possíveis pois o que são pensamentos senão construções baseadas nos objetos da atenção? Para pensar as relações, opto pela atenção. Um dos meus professores me ensinou sobre as qualidades de aplicar e não aplicar a mente. Quando usar a mente, quando não usar a mente, quando aplicar atenção, quando deixar a atenção se abrir em clareza…
Prestar atenção, isso é atender. Atenção, do verbo atender. Como atento é como atendo ao que sinto, ao que se passa comigo em meio a vocês. Atenção ao fato de que, por vezes, sou capaz de me manejar, me organizar e localizar ali. Atenção ao fato de que há vezes quando não consigo me localizar, me perco, me extravio, me confundo, afundo em dúvidas, em descréditos, em desmedidas, e assim por diante. Na atenção aprendo que olhar para isso me ajuda a pensar sobre isso. Ouvir o canto dos pássaros, entrar no oceano, caminhar de mãos dadas com a mente, descansar na dúvida… para viver a relação, para estar nela, sabendo-me ali, em meio aos sonhos e pesadelos, meus e de vocês. E agir. E agir quando for de agir. E agir temerariamente. E agir com habilidade. E agir distraído. E agir com conscienciosidade. Atentamente. Na medida em que posso estar. E desejo estar. Ainda que saiba que a clareza não precisa de alguém que tenha clareza para ser o que é: clara, desde, como dizem alguns amigos, “o princípio sem princípio”.
[Escrito sob a influência auspiciosa da querida amiga Thaiza Salgado. Possamos ter muitas conversas pela frente, maravilhosas, penetrantes, afrontosas e o que mais vier!]
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