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Foto do escritorBreno Xis

Espiritualidade como Fuga

Atualizado: 20 de jan. de 2023



Jack Kornfield elenca quatro “portões” conducentes ao “caminho espiritual”. O primeiro deles, considerado mais comum entre as pessoas, é através da experiência de sofrimento. Aqui, explicação e meios "espirituais" de curar o sofrimento estão na linha de frente da mente e motivação das pessoas. Por esse ângulo, não espanta que “lugares, espaços e experiências espirituais” estejam repletos de pessoas violentadas e traumatizadas. Como “locais de discernimento e lucidez” parecem até magnificar as tamanhas ignorâncias, confusões e vícios, bem como traumas e pesadelos, que as pessoas presentes levam consigo em suas "buscas espirituais".


Os "transportamentos ou êxtases espirituais” devem estar entre as primeiras experiências místicas do gênero Homo, dotado do que chamamos de consciência, talvez o mais poderoso psicoativo e acessível psicodélico disponível na natureza. Como seres sencientes, somos dotadas de consciência, difícil de capturar e dada ao surgimento das mais diversas aparências, até surreais, cuja presença por vezes “apocalíptica” teria grandeza magnetizante e, dizem alguns, efeito profundamente transformador.


Ocorre que tendemos a levar conosco nossas mentes e a reencontrar seus traços e predisposições cognitivas, incluindo elementos ideológicos de sentido e valoração. Carregamos todas as mágoas, faltas, ressentimentos, vontades de poder, de pertencimento, de dominação e passividade. Sejam quais forem nossos “atravessamentos”, nossas "esfinges", autoenganos, as qualidades misturadas da memória e do esquecimento, a coisa toda, incluindo o autocentramento e a consciência do autocentramento, tudo levamos conosco na nossa tentativa de não sentir dor, de ter sentido, e mais, de sentir e provocar prazer, ou de simplesmente ter uma "boa vida". Queremos tudo, mesmo quando esse "tudo" seja ou pareça ser algo relativamente pontual e razoável, como sentir algum tipo mínimo de alívio ou de reconhecimento básico.


É assim, por ser quem somos, ao menos corpos sensíveis e frágeis dotados de consciência e "razão", por assim dizer "uma bagagem", que infligimos “experiências místicas ou religiosas” com interpretações, oriundas de frequente motivação autocentrada, muitas vezes urgentíssima, de cessar, e aqui há quem diga que os fins justificam os meios, nossas fomes e precariedades. É nesse cadinho de pendências, questões mal resolvidas e condicionamentos cognitivos que teorias e práticas potencialmente emancipatórias transformam-se em armadilhas e pântanos de areia movediça; espantosas gaiolas, feitas de joias preciosas, fascínio, ego e mágoa.


A bagunça, o trauma, a dor e o sofrimento que levamos para esses caminhos são tratados por esses caminhos, essa é a promessa. "Dê-me aqui seus fardos e eu cuidarei deles para você”, diz a doutrina, diz o messias, diz o guru, diz a prática de meditação, diz o individualismo, diz a mente, diz o "argumento filosófico". É uma aposta, e, portanto, frequentemente nos deparamos com a palavra fé; com o elogio da fé; com a necessidade dela para “ver o que (ainda) não podemos ver”, para realizar algo que parece além de nossas capacidades, para nos curar de algo, que parece incompleto, vazio, estranho, doentio. E lá vamos nós, com essa motivação que é carne viva, chaga que nos tira o sono, para outro mundo: um mundo tão desejado, de leite, mel e conhecimento, um mundo de promessa, um mundo de cura, um mundo imorredouro, mais real do que o real, para o qual se desperta e, agora, chegamos finalmente ao fim! "Vejo! Vejam! Eis a panacéia!" Estamos iluminados, sabemos o segredo, somos iniciadas na grande ordem cósmica, conhecemos nós mesmos, a verdade ou, pelo menos, a nossa verdade. Mas então, quem diria?, constatamos aterrados: quanta roupa resta para lavar!


Bem aqui, entre o que pensamos ser a realização de uma verdade libertadora e a continuidade das lutas do mundo - apesar da devoção! apesar do insight! - que faz-se, mais ou menos conscientemente, uma das decisões mais cruciais da "experiência espiritual": materializar, ou não, toda a novidade, a nomenclatura espiritual das coisas, os ritos sagrados como ornamentos de um renovado autocentramento e, mais especificamente, como mecanismo neurótico de defesa e evitação daquilo mesmo que sobrevive ao encontro com o “espiritual”, ou seja, o mundano, o corpo, o impuro, a mente, as estruturas político-ideológicas, as confusões em nossas tribos, com nossos filhos e filhas, parentes, entre uns e outros, que nos escapam, que nos sitiam pelas brechas, quando menos se espera. O que fazer disso? O que fazer diante do assalto da realidade ao que pensávamos resolvido e/ou menor? Uma via, evidentemente comum e frequentemente insatisfatória, é fazer do chamado "caminho espiritual" a única chave interpretativa através da qual operar os encontros com aquilo que nos busca apesar de nossos esforços contrários, tornando-o, na prática, mecanismo de evitação de questões "sombrias": jogos de poder, dificuldades emocionais e interpessoais que precisam ser objeto de escrutínio e, possivelmente, de terapia.

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