Um de meus professores falava de uma tal “ignorância conceitual” que, selecionando e estruturando cada momento de percepção, implicava em cognição dualística. Dizia que a conceitualização remetia-se à si própria, validando-se ou não, mas sempre reluzente, encantadora, como uma trama mágica e/ou lógica. Esse "brilho", aliado à crença na existência intrínseca do sentido, estariam na gênese da angústia, dentre outras perturbações, segundo ele.
Aprender sobre a "vacuidade" do significado dos sentidos tem sido, para mim, uma experiência ao mesmo tempo maravilhosa e perturbadora. Se, por um lado, posso admirar a criatividade da mente discriminativa em sua arbitrariedade, por outro, tenho medo no que pode significar (!) tanta liberdade, pois é sobre isso que se trata a instrução acerca da ignorância conceitual: liberdade.
Gostamos de falar da liberdade, e frequentemente usamos o termo como uma das cerejas do bolo ideológico, mas nossa relação com o referente do termo pode ser consideravelmente ambivalente e problemática. Porquanto gostamos das vantagens de uma liberdade que trabalha a nosso favor, frequentemente desgostamos de uma liberdade que nos questiona e relativiza. Essa liberdade da qual falamos em alta conta é de frutos e espinhos e não está exatamente por nós, mas entre nós, como fendas da exibição espontânea, por exemplo, da vacuidade de referentes e sentidos.
Por que falo disso? Eis uma razão numa simples saia. Algumas perguntas podem dar início à contemplação: O que é uma saia? Quando uma saia deixa de ser saia ou começa a ser saia? Quem pode vestir uma saia? Quando é apropriado não vestir uma saia? Qual o verdadeiro nome da saia? Quem decide? Quais são os critérios que transformam uma saia num implemento sagrado? Todas essas questões, dentre outras, são portas abertas à contemplação da vacuidade da saia.
Em minha jornada, descobri que saia é antes de tudo um fenômeno. Rigorosamente, creio, nem existe fora da mente. Especificamente, existe apenas na conceitualidade. É essa conceituação, tão culturalmente construída, que me dirá quando eu, um homem, posso vestir uma saia sem deixar de ser homem. Em certas culturas, nunca houve um homem que deixou de ser homem por vestir uma saia. Em ainda outras, nunca houve tal coisa como um homem ou uma mulher. Homens e mulheres, como categorias definidoras do que é permitido ou proibido, são também construções conceituais. Aqui preciso destacar que muitos de meus professores e professoras falam sobre tantos e tantos aspectos da vacuidade, mas muitíssimo raramente aventuram-se a declarar uma lógica de vacuidade de gênero. Só posso imaginar as razões desse silêncio.
A contemplação do caráter interdependente das concepções tem sido um fio difícil de equilibrar. Esqueço como manter uma visão que não degenere nos extremos da existência e da não-existência: “eternalismo” (e.g. “saias são para para mulheres”), “niilismo” (e.g. “quem se importa se saias isso ou aquilo?!”). O fio da meada (se há uma meada, se há um fio) é algo que, à mim, chega por erros e acertos que vão passando pelo “coração”. Descubro com curiosidade uma “esfera” para além dos conceitos, onde estes sequer - as fabricações conceituais - são negados ou asseverados, e aspiro uma liberdade em meio àquilo que se constrói convencionalmente, seja para apreciar sua espontânea reluzência (e.g. sensibilidade) e eventual habilidade (e.g. skt. "mahakaruna"), seja para questionar (e.g. “maiêutica”) e mesmo abandonar (e.g. "shamata") suas durezas feitas de fundamentalismo conceitual aflitivo.
[Este escrito, antes de tudo uma confissão, nasce sob a influência das caminhantes do espaço. Que as qualidades de liberação e fantasia possam ser realizadas.]
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